Saindo Jesus e seus discípulos de Genesaré, foram para Tiro e Sidom, duas cidades que eram, historicamente, inimigas do povo de Israel (Joel 3.4). Mateus nos conta que em determinado momento, uma mulher cananéia passou a seguir Jesus e seus discípulos clamando: "Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de mim! Minha filha está terrivelmente endemoninhada".
Interessante observarmos que, ao clamar pelo socorro de Jesus, essa mulher já demonstra maior conhecimento do que muitos judeus, até mesmo do que João Batista, que teve de enviar mensageiros para perguntar a Cristo se era realmente ele o Messias prometido (Mateus 11.2,3)! Ela o chama de "Senhor" e "Filho de Davi", reconhecendo não só que ele era aquele a respeito do qual fora profetizado em toda a Escritura, mas também sua linhagem real. Como se todo esse conhecimento não bastasse, ela mostrou também que tinha fé de no poder de Cristo para sua curar sua filha, quando muitos de seus discípulos duvidavam do poder de seu Mestre, como vimos em Mateus 14.22-33.
Apesar de clamar e mostrar um conhecimento raro das Escrituras até para um judeu, Jesus inicialmente não responde ao pedido daquela mulher, parecendo ignorá-la. Seus discípulos, porém, pedem a ele que a despeça! Jesus, então, ignorando o pedido de seus discípulos, passa a responder à mulher, dizendo: "Não fui enviado senão às ovelhas perdidas de Israel". Ela, porém, o adora e implora por seu socorro, ao que ele, novamente responde: "Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-los aos cachorrinhos". A resposta de Jesus, novamente, pode parecer dura ao compará-la com um animal, mas no caso, a palavra "cachorrinho" não está sendo usada num sentido pejorativo, pelo contrário, comparando-a aos filhos (povo de Israel), ela e os demais gentios eram como animais domésticos. Jesus não a trata com desprezo, mas com carinho, apesar de deixar clara a prioridade que os israelitas possuíam.
Apesar de termos diversos relatos bíblicos de estrangeiros (ou gentios) que passaram a fazer parte de Israel, a prioridade das bênção divinas sempre foi direcionada aos israelitas (Romanos 9.4,5), e é por isso que Jesus inicialmente se "nega" a curar a filha daquela mulher.
Entretanto, seu objetivo era testar sua fé. E a isso, ela responde:"Sim, Senhor, porém os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus donos".
Aquela mulher, que pertencia a um povo pagão, a um inimigo histórico de Israel, uma mulher que não descendia de Abraão e que não foi agraciada com as bênçãos da eleição nacional, mostra uma fé maior que a de muitos que descendiam diretamente de Abraão, que eram circuncidados e eram ensinados ao sábados nas sinagogas desde a infância. Ela sabia que apesar da prioridade ser dos filhos, a misericórdia de Cristo transbordaria para os "cachorrinhos", e abrangeria outros povos e nações. Ela mostra também saber que qualquer migalha da graça divina seria o suficiente pra curar sua filha, e que ela estava plenamente satisfeita com essa situação.
Apesar de Jesus ter sido enviado para as "ovelhas perdidas da casa de Israel", ele mostra aos seus discípulos que o evangelho não era só para os israelitas, como Oséias, há algumas centenas de anos já havia profetizado:"Semearei Israel para mim na terra e comparecer-me-ei da Desfavorecida; e a Não-Meu-Povo direi: Tu és meu povo! Ele dirá: Tu és o meu Deus!" (Oséias 2.23). O evangelho não era apenas para os israelitas, como o texto de Atos 10 nos mostra, o que contrariava o entendimento de muitos judeus naquela época. Porém, Cristo mostra a seus discípulos através dessa situação que para o evangelho da graça de Cristo "não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher" (Gálatas 3.28), aquele porém ainda não era o momento em que o Cristo seria pregado a todo o mundo indistintamente.
Jesus disse a ela:"Ó mulher, grande é a tua fé! Faça-se contigo como queres". A resposta de Cristo àquela mulher difere totalmente do que, pouco tempo antes, Jesus havia dito a Pedro, seu discípulo: "Homem de pequena fé, por que duvidaste?"(Mateus 14.31). Podemos observar também uma clara distinção entre a fé e o conhecimento apresentados pela cananéia e a total falta de entendimento das Escrituras apresentada pelos escribas e fariseus em Mateus 15.1-20.
De todas as maravilhosas lições que podemos tirar desse trecho, uma me chama a atenção: nosso conhecimento das Escrituras e nossa situação como frequentadores de uma igreja fiel não nos confere automaticamente a fé que Deus requer de nós, já que a mesma não é dom propriamente nosso!
Como Deus disse a Moisés:"terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia e me compadecerei de quem eu compadecer"(Êxodo 33.19). Pois "não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia"(Romanos 9.16). Que Deus tenha misericórdia e se compadeça de nós, pois apenas através de sua eleição incondicional, poderemos receber as migalhas que caem da mesa.
Lucas Quaresma
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